À conversa com Beatriz Bagulho
No À conversa com, o Manta de Retalhos propõe-se a conversar com várias pessoas de diferentes áreas criativas, com algum olhar privilegiado para aquelas que de alguma forma envolvem a palavra, sobre os processos criativos de cada um, a importância da educação e do contexto ao longo do percurso e, naturalmente, da palavra em si, seja ela escrita, lida, musicada, dançada ou desenhada.
Desta vez, a conversa foi com a Beatriz Bagulho, uma muitíssimo jovem e talentosa Animadora, Ilustradora que também mete as mãos no Design Gráfico e em tudo o que do mundo plástico e visual lhe possa interessar. Num tom informal e até familiar, falou do seu percurso, do seu processo criativo, demonstrando marcada determinação e tenacidade. Com um pé no futuro e outro no passado, pois abraça tanto o mundo digital como o do papel com frescura, aos 24 anos, tem participado em vários projectos em áreas como a Cenografia, o Desenho editorial, a Ilustração, exposições de desenho, Design gráfico e Cinema de Animação, em colaborações com o CCB e a Companhia Nacional de Bailado.
As suas duas curtas-metragens, Corporealitis e (In)dividual já foram premiadas em vários festivais internacionais.
Vale a pena conhecer o percurso e o trabalho da Beatriz.
Manta de Retalhos – Como começou o teu percurso? Desde quando te lembras de desenhar e como foi o percurso desde a infância até à Arroios e ao hoje?
Beatriz – Acho que tive uma educação que desde logo propiciou a criatividade, tal como a Matilde – sua aluna-, uma educação em que criar coisas é valorizado, em que divertires-te sozinho, o não precisares de estímulos externos para te divertires, o que é muito importante. Faz com que haja um espaço para imaginar e para brincar, para criar mundos, personagens e para ler. Eu lia muito em pequena e, como todas as crianças, gostava de desenhar. Acho que toda a gente se for motivado para isso pode criar Arte. Seja de que forma for.
Manta de Retalhos – Mas há que crianças que são logo assim, ninguém precisa de lhes dizer nada. Tu eras assim?
Beatriz – Sim, nunca ninguém teve de me ajudar com os trabalhos de casa, também sempre fui muito responsável. E sempre gostei de me entreter.
Manta de Retalhos – Com que idade é que tu te lembras de começar a desenhar? Tens ideia?
Beatriz – Eu em criança desenhava como toda a gente desenha, acho eu. Também desenhava nas aulas. Depois tive um período em que deixei de desenhar, portanto, lembro-me perfeitamente de quando recomecei, o que foi mais tarde. Com a idade da Matilde não desenhava. Foi só depois a partir dos doze, treze anos que voltei a ter interesse, porque antes disso estava a focar-me mais na Música. Eu estava no Conservatório e nem sequer pensava muito no assunto, no que queria fazer quando fosse grande.
|a mãe da Beatriz que, entretanto, veio dizer olá, esclareceu que, mal nasceu, passado um ano ou dois parecia já saber pegar num lápis. Era incrível.|
Beatriz – Há uma outra questão… os meus avós são arquitectos, o meu pai também, e eu lembro-me de estar horas lá no atelier a entreter-me sozinha com os materiais que lá havia. Eram ou aquelas casas de esferovite com os bonequinhos ou papéis e canetas e… desenhar.
| E era a Maria, a mulher do pai, que faz/trabalha Educação pela Arte, a minha mãe que também a ensinava a desenhar. Tinha muitos estímulos. – acrescentou a sua mãe.|
Manta de Retalhos – Portanto, o ambiente exponenciou.
Beatriz – Sim. A minha mãe ficava a tocar de manhã. Todas as manhãs e aos fins de semana.
| Apanhou muitas secas, muitas, muitas secas. Que é coisa que os miúdos hoje em dia não apanham – mãe da Beatriz|
Manta de Retalhos – Secas das boas.
Beatriz – O que é que eu podia fazer? Não podia ver televisão porque fazia barulho e, portanto, era brincar, ler e desenhar.
Manta de Retalhos – Portanto, a disciplina é amiga da excelência e da criatividade. Achas que sim ou não?
Beatriz – E o espaço para estar sozinho. Não ter irmãos deu-me esse espaço, de alguma maneira.
Manta de Retalhos – Como foste parar à António Arroio? Como é que de repente a Música foi embora e decidiste-te por este caminho?
Beatriz – Por volta dos onze, doze anos, para além da escola, que era o Conservatório, também estava envolvida numas óperas infantis. Na altura havia bastantes, pelo menos eu participei em três ou quatro… com coros e solistas que eram crianças. Lembro-me perfeitamente de conhecer lá umas raparigas que andavam na António Arroio, eram mais velhas do que eu. Fiquei fascinada com o que me contaram sobre a António Arroio.
Foram várias coisas que aconteceram na mesma altura. Agora, olhando para trás, é que percebo. Entretanto, também nessa altura, abriu o museu da Paula Rego e eu lembro-me de lá ir e adorar, de ficar completamente incrédula com aquela força. A minha avó, que foi comigo, ofereceu-me logo um caderno com um desenho da Paula Rego.
Depois, como comecei cada vez mais a ficar mais interessada, nesse Natal recebi, para além de montes de material de desenho, o curso de Desenho na NextArt. E, então, comecei a interessar-me mais e mais até que a certa altura, lá no Conservatório, no integrado, eu acabava por ser a rapariga que desenha. Éramos todos artistas, todos envolvidos com as artes e com a música e eu acabei por começar a ter essa identidade, a pessoa que gosta de desenhar. Pediam-me para fazer retratos e afins. Acho que isso também fez com que eu fosse ficando mais interessada. Era algo em que eu sentia que tinha o meu espaço. Na altura, tu procuras muito saber quem és, não é? Aos doze, treze anos. Queres perceber quem és tu com os outros e encontrares-te com os outros.
Decidi, por volta do 8º ano, começar a trabalhar muito na área visual para conseguir entrar na António Arroio. Até houve um problema, porque lá no Conservatório no 9º ano, nós não tínhamos E.V. (Educação Visual), então a minha mãe esforçou-se e fomos falar com a Direcção e conseguimos que eu tivesse uma professora particular lá na escola para ficar a par e ter uma nota equivalente. Foi assim. Foi gradual, mas foi nessas idades importantes, entre os onze e os catorze anos.
Manta de Retalhos – Imagino que quem faz Ilustração também tenha dentro de si um contador de estórias. Tu sentias esse universo narrativo quando eras pequena ao partires para um desenho?
Beatriz – Sim. Eu adorava Banda Desenhada e adorava ler. Estava sempre a ler. Li, por exemplo, cinco ou seis vezes a série do Harry Potter e tudo o que era livros de Fantasia e Magia. Portanto, ainda é uma coisa a que estou muito ligada e um dia gostava de criar, de fazer um mundo de Fantasia.
Manta de Retalhos – Quando lias tinhas essa vontade depois de desenhar em torno do que tinhas lido?
Beatriz – Sim, de criar as personagens. Também fazia, eu própria, Bandas Desenhadas do que imaginava. Eu acho que um Ilustrador não é só alguém que pega numa estória e a torna visual, que a visualiza, mas é alguém que também tem dentro de si as próprias estórias ou ideias que quer criar e passar para os outros, como qualquer artista. Mesmo a Música que é uma arte muito mais abstrata e emocional. O que é que faz com que queiras começar a criar? Tens uma narrativa, mesmo que seja uma narrativa abstrata.
Manta de retalhos – Não deixa de haver aqui, por vezes, alguma diferença? Deixa-me provocar-te. Há muito músico que é apenas intérprete e que gosta de ser apenas intérprete, outros que não, que gostam de criar e de fazer tudo o que lhe é afim, mas quem ilustra acaba necessariamente por ter de explicitar sempre essa narrativa interna, mais do que um músico ou mais do que um músico-intérprete, não? Concordas?
Beatriz – Na minha prática concordo, mas conheço pessoas e conheci desenhadores, por exemplo, em Inglaterra quando estava a estudar Animação, pessoas que gostavam de usar o Desenho como ferramenta, mas que não tem necessariamente essa necessidade de contar estórias. Por exemplo, um filme de Animação grande, nos filmes do Miyazaki trabalham montes de pessoas, três mil pessoas talvez, e há pessoas que desenham, outras que estão simplesmente a passar desenhos a limpo ou há pessoas que estão a pintar os fundos. Para os fundos até tens de pensar um pouco na estória, no ambiente, mas, de qualquer forma, nem todos os trabalhos que envolvem o desenho estão a contar estórias.
Manta de retalhos – Que outras ferramentas é que tu achas que são importantes, a partir de uma certa altura, para fazer desabrochar não só o contador de estórias visuais, mas o artista visual nas suas várias linguagens? Pergunto-te pensando num leitor que esteja a fazer o seu caminho e à procura de uma orientação.
Beatriz – Se calhar para chegar aí, tenho de recapitular um pouco. Na verdade, eu não sou só Ilustradora, também faço Animação e também faço Design Gráfico e também tenho uma aprendizagem em Música. Eu acho que sem uma destas aprendizagens, as outras seriam muito diferentes. Para mim, para o que eu faço. Ter estudado Design Gráfico na António Arroio deu-me uma capacidade de sintetizar e de encontrar um processo de trabalho que muitos ilustradores não têm, têm outros. Ter estudado Música dá-me uma abertura de ritmo que no Cinema, por exemplo, é muito importante. Essencialmente, acho que uma pessoa que queira fazer um trabalho parecido com o meu, de criar universos visuais, tornar coisas em coisas visuais ou criar estórias visuais tem de inspirar-se, de criar um espaço mental em que está só a absorver e isto é feito indo a exposições, a ver filmes, espetáculos, mas também simplesmente a passear e a observar com atenção, não apenas olhar. Observar as pessoas num autocarro, por exemplo. Também é preciso, depois de te inspirares, de expulsar. Para mim, é expulsar, anotar como os escritores e os atores. Ter sempre um diário gráfico é essencial para qualquer artista visual.
Manta de retalhos – Também fazes anotações sobre os gestos das pessoas, por exemplo, como se movimentam? Eu quando estudei teatro, a fim de estudar e melhorar a minha construção de personagem e interpretação, tinha de fazer exercícios de observação em que ia para a rua observar apenas uma mesma acção realizada por várias pessoas. Também fazes isso?
Beatriz – Sim, em Animação há muitos pontos de encontro entre o fazer a animação de personagens e actuar, construir um personagem. É sempre diferente porque em Animação tens de exagerar tudo ou passa despercebido, mas sim, nesse ponto da inspiração há muitas situações semelhantes. Mas em Animação o tipo de actuação é mais parecido com o Cinema mudo onde são necessárias acções mais exageradas. Portanto, também me inspiro em e estudo muito o cinema mais antigo e, claro, o cinema de animação.
Manta de retalhos – Voltando à questão do desabrochar e sabendo que não existe uma forma única de percorrer um caminho nem uma altura certa para iniciar, ainda assim, consideras que numa intenção profissional é importante trilhar um caminho, desenvolver todas essas ferramentas desde cedo?
Beatriz – Eu acho que desde pequenino é preciso criar as ferramentas básicas para qualquer artista que são o interesse por criar, a motivação e a disciplina para acabar as coisas, mas estes são conceitos gerais que também podem ser aplicados a um trabalho científico. Desde criança, é como se fossem as bases da tua personalidade e vai-se trabalhando por cima disso. Se uma pessoa for pouco motivada, mais tarde terá mais dificuldade em desenvolver a motivação, apesar de o ser possível, apenas terá de se esforçar mais, pois não lhe será tão natural.
Quanto às ferramentas mais específicas, se queres fazer Animação, Cinema, Fotografia, acho que até é melhor, na adolescência experimentar-se várias coisas do que ter um caminho logo muito definido, como muitos músicos têm, que estudam só violino, por exemplo, durante vinte anos, maioritariamente sempre no mesmo estilo e depois vão ser violinistas, e pronto.
Acho que quanto mais se experimentar as várias disciplinas criativas, melhor. Cada disciplina não é uma coisa isolada, é algo que serve para outras coisas. Saber tirar fotografias é muitíssimo útil para se perceber de composição de imagem. Para mim é importantíssimo. Tudo se interliga muito mais do que as pessoas acham e que querem pôr-nos em caixas. Tu és isto, não podes fazer mais nada. Não é bem assim. Na adolescência quanto mais se estudar e se experimentar, melhor, até porque se está a tentar perceber o que se prefere.
A partir de certo ponto, tens, realmente, de começar a afunilar, mesmo que não seja de descartar completamente algumas coisas, mas priorizar. Eu tive de deixar o violino, a música e o canto porque, realmente, o dia só tem 24h e se eu quero ser especialista numa área, não posso, não consigo ser especialista em cinco ou seis.
Mas quando se está a crescer, a ter esses anos em que se experimenta, experimenta, experimenta, também se cria um bichinho que nunca se vai embora. Um exemplo, no ano passado tirei um pós-laboral em Cinema Documentário, o que nunca irei fazer. Há sempre um bichinho que te faz estar aberto a experimentar novas coisas.
Manta de retalhos – Há sempre qualquer coisa que bebes de lá e que levas para o teu trabalho atual.
Beatriz – Sim, claro.
Manta de retalhos – Dentro de tudo o que tu fazes… recorda-me, fazes Ilustração, Animação, exposições…
Beatriz – Sim, mas exposições de Ilustração. Não me considero exatamente uma artista plástica como os artistas contemporâneos. Sou uma pessoa muito figurativa e o meu trabalho é muito figurativo, por isso não posso ser uma artista conceptual, digamos.
Manta de retalhos – Qual é o teu universo?
Beatriz – Eu faço Ilustração e Animação, ou seja, desenhos estáticos e desenhos em movimento – no fundo é isto – ou universos desenhados, digamos. Também faço Design porque também gosto de imaginar um objeto em si com as ilustrações. Para mim é tudo o mesmo, mas hoje em dia é preciso catalogar muito bem as coisas e, então, é estranho.
Manta de retalhos – Para ti é sempre desenhar, não é?
Beatriz- Para mim é sempre desenhar coisas visuais. Coisas é uma palavra feia, mas quer seja num livro, que vais folheando e passando por imagens e por ilustrações, quer seja num filme em que vais vendo as imagens de seguida e os planos, claro que são plataformas diferentes e por isso têm exigências diferentes, mas o meu trabalho é sempre muito parecido entre si, à excepção do trabalho técnico, claro. Na fase de criação, na fase em que estás só a imaginar é sempre muito parecido.
Manta de retalhos – Imagino que, entre as tuas linguagens, a tua preferida seja a Animação.
Beatriz- Eu decidi tirar a licenciatura em Animação porque percebi que era o trabalho mais complexo e aquele que eu não ia conseguir desenvolver em paralelo a um outro curso, que foi o que me aconteceu. Eu estava a estudar Animação e, em paralelo, fui desenvolvendo trabalhos em Ilustração e ao contrário não teria dado.
Há muitos ilustradores que mesmo que gostem de Ilustração e façam um bocadinho, não são Animadores, porque exige muito mais técnica e trabalho. Tens mesmo de desenvolver a técnica e trabalho especializado. Eu só comecei a autodenominar-me como Animadora há cerca de um ano e já animo há cinco ou seis. É muito mais difícil.
De qualquer forma, do que eu gostava mesmo, no futuro, era ser uma espécie de diretora de um estúdio onde se está a desenvolver, em paralelo, trabalhos de Comunicação Gráfica e Visual, trabalhos de Ilustração para umas cenografias de espetáculos, trabalhos de Concept Art para um videojogo e ao mesmo tempo desenvolver curtas-metragens e anúncios. Isso era o que eu gostava. Ter um mundo onde tu entras e está ali a desenvolver-se uma data de coisas em paralelo, com pessoas a trabalhar comigo e para mim e eu poder ir saltando de projecto em projecto.
Manta de retalhos – Tens aí uma ideia toda Speedy Gonzalez, uma série de coisas ao mesmo tempo. Parece-me muito giro, sempre a interdialogar. Eu também tenho esse bicho, compreendo-te perfeitamente.
Como é o teu processo criativo por entre as várias linguagens, i.e., o que converge e o que diverge?
Beatriz – Há uma distinção grande entre projectos de encomenda, projetos em que vêm ter comigo e me pedem para fazer alguma coisa com eles ou projectos em que sou eu a criadora, projectos que vêm de mim. Aí sou uma iniciante, profissionalmente estou a começar. Quando é assim, eu própria faço uma proposta, participo num concurso e depois posso desenvolver esse projecto, mesmo que seja em equipa, enquanto criadora.
Nos projectos de encomenda, que é onde tenho mais experiência, há sempre uma primeira fase em que recebo uma espécie de brief, um enunciado, que varia imenso consoante a proposta, consoante o projecto e dessa ideia, desse conceito que me pedem tenho que perceber quais são as imagens mais importantes. Por exemplo, se for um livro, leio o livro todo, vou tirando notas e vou percebendo quais são os capítulos que eu gostava de ilustrar, mais impactantes. Nalguns casos, qual é a imagem mais impactante para cada capítulo.
Quando são projectos em que sou a Animadora, a fase seguinte, que é a fase dos esboços, é muito parecida. Em Animação tu tens os storyboards, antes ainda tensos beatboards, talvez seja já um pouco técnico demais, mas, basicamente, são as imagens mais importantes do filme. Em livros também, tens que esboçar as imagens mais importantes do livro. Em espectáculos, que imagem vai ser para cada cena.
Nessa fase, o trabalho acaba por ser todo igual para mim, e essa fase dos esboços é muito importante. É nessa fase que tens o tal trabalho de pesquisa e de observação, quer seja observação na tua vida quotidiana – ires procurar situações ou sítios parecidos -, quer seja a pesquisa secundária, digamos, ir ver o que outras pessoas fizeram a partir da mesma ideia ou o que artistas já fizeram no mesmo estilo que tu queres fazer, etc.
Só depois de teres essa base de pesquisa – que por vezes pode ser uma pesquisa muito simples – é que podes começar a esboçar usando os materiais que tens como inspiração, quer sejam os materiais da pesquisa quer seja a base do projecto que tens, o texto, o argumento, etc.Depois dessa fase dos esboços como, normalmente, estamos a falar de projectos nos quais trabalho com alguém que os lidera, tenho de a passar a eles.
É aí que o meu trabalho acaba por ser muito parecido com o de um designer. Mesmo sendo a Ilustração uma área em que há mais liberdade criativa ou liberdade artística – pelo menos a Ilustração que eu faço, que nunca fiz para Publicidade – mesmo sem ser fechada criativamente, tem de haver sempre um diálogo. Mesmo que não haja um cliente, a pessoa que me chamou para o projeto acaba por ser meu cliente, portanto, não posso só fazer o que me apetecer.
Em geral, tenho tido muita sorte. Tenho sido chamada para projectos muito interessantes e nunca tive de abdicar de muita coisa, as minhas ideias têm sido sempre bem recebidas, mas, de qualquer forma, é importante manter sempre o diálogo, porque mesmo que esteja a criar sozinha, não estou a criar o projecto sozinha.
Resumindo, estávamos nos esboços, depois dessa fase tenho aquela em que tenho de os entregar ao cliente, incluindo também a pesquisa que às vezes é muito importante para explicar a ideia, imagens de referência, etc.
Finalmente, chega a fase de produzir.
Manta de retalhos – Já depois de terem chegado a um acordo final…
Beatriz – Claro. E eu tenho colegas que trabalham de forma diferente, mas para mim, talvez também pela disciplina que obtive do Conservatório, eu tenho necessidade de organizar tudo muito bem e estruturar todo o meu calendário, etc., e depois seguir esse calendário com disciplina. Às vezes, dou um bocado em maluca.
Manta de retalhos – Para quem não nos entende, quando dizes que calendarizas tudo, as datas, claro, mas também o que vais fazer em cada dia, é isso?
Beatriz – Em cada dia, sim.
Manta de retalhos – Um escritor, por exemplo, faz um plano do livro e depois secciona por capítulos e vai trabalhando, ou não, já se sabe que cada um com o seu modelo…
Beatriz – Sim, mas há pessoas que têm outros processos, lá está. Há muitos escritores que nunca trabalhariam assim, ficariam frustrados ou sem ideias, mas para mim esse é o processo que comecei a desenvolver e gosto. Gosto de ter um dia para trabalhar nesta imagem, mesmo que esteja desinspirada. Eu acho que isso da inspiração, às vezes, também usado como uma desculpa para a preguiça e, então, eu forço-me e gosto de me forçar e, portanto, acabo por conseguir.
Manta de retalhos – Engraçado. Eu percebo quando dizes que há muita gente que tem outros processos, mais livres, e concordo, mas lá está, como eu, também, fiz a minha formação desde nova, senti, pelo menos, que a disciplina para trabalhar era muito mais significado ou expressão de liberdade criativa. A organização permite-te, depois, teres liberdade para ires para onde queres, quando não estás perdida na tua linha orientadora, não é?
Beatriz – Sim, e eu estou sempre a inventar. Quando não tenho encomendas – o meu namorado está sempre a dizer isso -, nunca estou sem trabalho, porque quando eu não tenho, eu invento. Quando eu não tenho nada para fazer, imagina, uma semana sem ter de a organizar para todos os projectos, então digo eu, Ok. Eu hoje vou trabalhar para esta exposição que eu gostava de fazer daqui a dois anos. Amanhã vou trabalhar para... ponho-me a inventar projectos.
Também é bom, porque assim tenho sempre coisas na carteira que estou a desenvolver há anos e que um dia, se calhar, podem servir para alguma coisa. Isso também acaba por estar relacionado com outro aspecto que eu acho que é muito importante, que é o exercício diário. Como se criar fosse um músculo e tu tivesses que, todos os dias, exercitar um pouco, senão começas mesmo a ficar mais perro.
No Desenho, isso nota-se muito. Quando eu passo alguns meses sem desenhar, por exemplo, à vista – posso desenhar em projetos, mas sem ser à vista -, noto logo que é um bocado mais difícil. Como os instrumentistas.
Manta de retalhos – A criatividade é muscular. Quanto mais a trabalhas, mais ela se jorra naturalmente. Tudo é muscular. No Teatro, se alguém fica muito tempo longe do palco, da interpretação, pode ganhar mais pudor, novamente o sentido do ridículo.
Beatriz – Sim, o medo. O pudor, nos actores, está, também, relacionado com o medo de falhar.
Manta de retalhos – O exercício diário dá-te um automatismo que não te leva a questionar se és capaz ou não. Fazes automaticamente.
Beatriz – É por isso que o diário gráfico é importantíssimo. Porque tu não o estás a fazer para mostrar a ninguém, i.e., não tens a pressão que tens se tiveres de o mostrar a um cliente, mas estás a exercitar, estás a criar, mas estás livre e descomprometido e se te comprometeres, funciona. Manténs-te activo.
Manta de retalhos – Como é que olhas para a era digital? Há quem diga que desenhar num tablet não é a mesma coisa, como quem diz que escrever num computador ou ler num formato digital não é a mesma coisa. Precisa de ler, de escrever ou de desenhar à mão. Mas o mundo está a mudar, essa é a verdade. Como é que tu vês essa relação, esse novo mundo e as novas ferramentas?
Beatriz – Eu gosto muito da altura em que estou. Basicamente, é isso. Há vinte anos eu não poderia fazer o que faço. Demoraria o triplo do tempo ou nem seria mesmo possível. O que eu tento fazer é, exactamente, tentar estar no intermédio que se cria entre a plasticidade das coisas manuais, tácteis e reais. – e que se nota, é sempre diferente – mas, estar entre isso e as possibilidades do digital, as ferramentas que facilitam tanto, que possibilitam muitos mais processos automáticos.
No Desenho é exactamente isso que eu tento fazer, assim como nas minhas animações. Por exemplo, tento criar uma peça em que tens o prazer das coisas manuais, o prazer da plasticidade orgânica. Eu acho que se nota muito os materiais quando é desenhado a lápis ou no digital, mesmo com todos os brushes digitais que há actualmente e que simulam as aguarelas, é diferente. E mesmo quando estás a criar, é diferente, sim. Eu acho que é diferente desenhar num tablet ou desenhar em papel. Tens prazeres diferentes, e vantagens e desvantagens completamente diferentes. Ainda assim, ambos são muito úteis.
Desenhar no digital para um Animador é essencial. Podes fazer um traço, clicar control Z, apagas e fazes outro. Se fosse num papel, terias de deitar para o lixo, voltar a pegar noutra folha e fazer de novo, ir com a borracha – que ainda se vê – e, ainda assim, é um processo mais demorado. Quando tens um dia para fazeres cento e cinquenta desenhos, faz toda a diferença.
Quando chega a parte de criar a estética de uma curta, de um vídeo, para mim é muito diferente ver uma coisa que é toda digital ou ver uma coisa que tem elementos gráficos reais, tem elementos plásticos.
Manta de retalhos – Eu fui procurar informações sobre a Cintiq e vi um vídeo no Youtube de um designer e ilustrador a explicar a diferença entreo IPad Pro e aquela coisa enorme que é a Cintiq profissional.
Beatriz – A minha é mais pequenina do que a desse senhor.
Manta de retalhos – Cada vez que ele olhava para a Cintiq e que dizia que tinha uma sensibilidade mesmo muito boa, os olhos dele brilhavam. Para ele, desenhar à mão é sempre um prazer e, por isso, os olhos dele brilhavam mais quando olhava para a Cintiq do que para o Ipad.
É muito engraçada essa questão importância da sensibilidade e de poder usar a mão, mas por outro lado, o digital veio ou pode vir os receios antigos dos pais. És artista?! Então, não vais comer.
E a verdade é que as pessoas ainda não perceberam que o mundo digital potencializa e potencia mais oportunidades para que essa realidade – a de ser artista – seja uma verdade. O que pensas disso?
Beatriz – Pois é, é isso mesmo. Isso também acontece muito por ser em Portugal. Acho que nesse departamento, da relação que eu tenho com o mundo digital, ter ido para Inglaterra foi crucial. Em Inglaterra, vê-se mesmo de outra forma a importância de, por exemplo, teres um bom computador, teres uma Cintiq, perceberes qual é o melhor programa para o que tu queres. É mesmo diferente.
Cá em Portugal, as escolas não valorizam isso. Há muitos poucos cursos de licenciatura. Há muitos cursos profissionais que estão muito mais actualizados tecnologicamente.É muito diferente e isso acaba por, mesmo que não seja de propósito, atrasar as pessoas. Porque é que hás-de estar a utilizar ferramentas de há vinte anos, hoje em dia?
Não faz sentido, quando é tão simples manter-se apenas actualizado. Se daqui a vinte anos eu usar as ferramentas que uso hoje, alguma estará mal, pois daqui a vinte anos com certeza irá haver ferramentas muito mais sensíveis, que trabalham muito melhor as desvantagens das actuais.
Por outro lado, eu não era capaz de trabalhar só no digital. Traz outro tipo de desvantagens e de limitações. Tinha colegas que só trabalhavam em digital – o tipo de traço que tens de ter é muito mais firme – então, quando desenhavam em papel ficava muito estranho. Eles próprios depois tinham medo de fazer um traço mal, pois no papel não podes clicar control z. É uma limitação um pouco estranha. Tens é que ir praticando as duas coisas em paralelo.
Manta de retalhos – Tu já és uma jovemcom algum reconhecimento. Participas em muitos projectos, ainda bem para ti, e já tens sido reconhecida aqui e acolá. Que importância têm os concursos para um artista? Os concursos tê-la-ão, não só pelo reconhecimento, mas também pelo processo em si; mas o reconhecimento, que importância tem? As pessoas, às vezes, podem achar que é apenas fogo de artificio, mas na realidade também pode ter uma intervenção propulsora, não é?
Beatriz – Como eu já disse antes. Quando não tenho coisas para fazer, invento. Parte desse inventar é inscrever-me em coisas, participar, desenvolver propostas de financiamento e afins. É um trabalho que só comecei há pouco tempo, há dois ou três anos, porque só há pouco tempo é que deixei de estudar, mas que é importantíssimo para manteres a prática e também para perceberes como é que podes viver a fazer criação cultural.
Se eu for artista e ficar só à espera venham ter comigo, quer dizer… as coisas não podem ficar todas entregues às estrelas, é preciso procurar-se saber o que se pode fazer para ter mais trabalho.
Eu tive sorte porque assim que acabei a António Arroio já fazia aqueles desenhos dos monstros e tive uma exposição sozinha no último ano da Arroio e a partir daí…
Manta de retalhos – Como se chamava essa exposição?
Beatriz – Era a cadernos. Não foi numa galeria super fancy, mas foi óptimo porque foi uma maneira de virem amigos dos meus pais, os meus amigos, pessoas que eu não conhecia e que conheceram o meu trabalho logo no início.
Daí tive propostas para projectos que mesmo que fossem mais pequenos do que os que faço agora, foram muitíssimo importantes nessa altura. Fez com que eu desenvolvesse um hábito de trabalhar paralelamente aos estudos, que eu começasse a perceber os meus processos e a ser freelancer antes de sequer de ter necessidade. Por outro lado, também me levou a aprender a trabalhar com equipas incríveis e aprender com eles.
Eu acho que é esse primeiro degrau é uma questão de estar no sítio certo, à hora certa, conhecer as pessoas certas que gostem do teu trabalho e que tenham projectos interessantes para te apresentarem. Isso, claro, não sei como é que se provoca porque eu não tive de provocar. Aconteceu-me.
Tive muita sorte. A partir dessa fase as coisas vão-se desenrolando e uma coisa leva à outra.
De repente, por eu ter feito este projecto e por tê-lo partilhado nas redes sociais, alguém gostou e um outro alguém me chamou para outro. Depois tive um website e as pessoas começaram a lá ir e chamaram-me para outras coisas. É como uma bola de neve, mas boa.
Manta de retalhos – O processo autoalimenta-se, claro.
Beatriz – É exponencial e ainda bem que é, mas, por exemplo, lá em Inglaterra tive uma amiga que não teve tantas oportunidades logo aos dezoito anos e isso faz toda a diferença. Faz com que andes mais devagar no início. No entanto, desde que te vás esforçando esse primeiro degrau acaba por acontecer a toda a gente, acho eu. Pode é acontecer um pouco mais tarde.
Manta de retalhos – Os concursos podem ser uma oportunidade de trabalhares esse processo como quem está a receber uma encomenda, não é?
Beatriz – Exacto. É muito importante. Eu, este ano, só participei em três ou quatro concursos, mas desde que saí da António Arroio estou sempre atenta.
Aí o mundo digital é muito fixe, porque aquilo dos algoritmos que te mostram coisas que tu procuras, serve-me imenso. Eu estou sempre a receber anúncios de concursos e de oportunidades artísticas. Muitas pessoas não recebem porque não procuram. Têm de começar a procurar para receberem.
Manta de retalhos – Portanto, aí está o bom uso do algoritmo.
Beatriz – Sim, não é só compras de roupa e viagens de avião, mas também podes usar a internet de uma maneira produtiva.
Manta de retalhos – Do teu trabalho realizado até então, qual é aquele que te chega mais ao coração?
Beatriz – Isso é muito difícil de dizer. Não se isto é bom ou mau, mas o trabalho por que estou mais apaixonada agora é aquele que estou agora a fazer.
Manta de retalhos – Boa! Eu acho que isso é bom.
Beatriz – É um projecto que estamos a fazer no CCB, com a Fábrica das Artes. É tudo à volta da Alice no País das Maravilhas. Trata-se de uma instalação, um videojogo, quatro espectáculos infantis para os quais eu e as minhas colegas estamos a fazer os cenários e os figurinos.
É por este projecto que estou apaixonada agora. Se eu estivesse apaixonada por um que já fiz e estivesse 100% satisfeita com ele e, nostalgicamente, quisesse voltar para ele, acho que não ia estar muito feliz.
Eu até tenho um processo um pouco oposto. Às vezes estou muito apaixonada e entusiasmada com um projecto, depois acabo-o e já estou farta. São meses. Depois, só consigo voltar a gostar dele uns anos mais tarde. Assim que o acabo, claro, estou feliz e aliviada por o ter acabado, mas não o consigo ver sem querer corrigir mais uma coisa e depois outra. Portanto, mais vale nem sequer olhar muito e voltar a vê-lo depois de respirar um pouco.
Manta de retalhos – Começaste a dar os teus primeiros passos no mundo do ensino. Como está a ser esta descoberta para ti?
Beatriz – Eu acho que só ao ensinar algumas coisas é que eu também estou a aprender outras. Apesar de não estar a ensinar uma pessoa da minha idade, ou seja, são sempre técnicas mais iniciais ou mais básicas, mas só ao tentar explicá-las é que eu me apercebo de como as faço.
Experienciar isso, pelo menos, uma vez na vida acho que é muito interessante. Não queria ser professora, mas adorava orientar workshops, ser, às vezes, uma professora convidada. Realmente, é uma experiência tão gira. Ver como é que a outra pessoa cria o seu próprio processo a partir do que tu disseste e que é diferente do teu. É muito interessante, é muito bom.
Está muito ligado às razões por que quis, a partir dos 17, 18 anos, enveredar por onde fui. Educar arte, fazer arte pela educação. É por isso que também faço tanta criação infantil, porque gosto de falar para as crianças. Sinto que só consigo falar para alguém depois de ter experienciado uma fase parecida com aquela em que ela está.
Claro que imagens que eu faço podem ser apreciadas e até interpretadas por uma pessoa de quarenta ou cinquenta anos, mas se eu estiver mesmo a contar uma estória, agora só me vêm estórias para crianças ou para adolescentes.
Eu não consigo inventar estórias sobre uma mulher de cinquenta anos que esteja a passar pela menopausa, por exemplo. Há pessoas que têm esse tipo de processo, mas para mim agora quero criar para crianças e para adolescentes porque quero, lá está, acabar por lhes ensinar algo por que eu passei para que eles também possam aprender.
Manta de retalhos – Talvez por ainda te ser um passado recente ou terá relação com o teu mundo de fantasia?
Beatriz – Sim, também. As estórias fantásticas são muito associadas à infância, o que acho que também não faz muito sentido.
Manta de retalhos – Há muito adulto que gosta do fantástico.
Beatriz – Da Ficção-Científica, mas é um nicho.
Manta de retalhos – Eu sinto que está a crescer.
Beatriz – Está, está e isso é óptimo para o Cinema de Animação e até para a Banda Desenhada. Cada vez investe-se mais em produções de Cinema de Animação para adultos. Isso é incrível. Mesmo que sejam estórias que não sejam de fantasia, lá está, há sempre o elemento de fantasia por serem desenhos em movimento, não está a tentar ser real. Quando a Animação tenta ser real, não está mesmo a aproveitar ao máximo o seu potencial.
Manta de retalhos – Para finalizar, o que dirias a um jovem que está a tentar trilhar o seu caminho? E atenção que há muitos jovens. Há quem tenha as potencialidades, mas não tenha o ambiente à volta, o contexto que o potencie. O que lhes dirias?
Beatriz – Para terem um diário gráfico e começarem a desenhar lá o que vêem no dia-a-dia, mas também o que imaginam. Escreverem em paralelo, desenharem as personagens das suas estórias. Podem pegar num conto ou num livro de que gostem e tentarem criar uma banda-desenhada, por exemplo. Acho que isso é essencial.
Depois, como fez a Matilde agora, descobrirem concursos e tentarem mesmo acabar uma coisa a que se proponham fazer. É isso que muitas vezes falta. Como com os nossos passatempos… como são passatempos, não há a obrigação de acabar. Ficas com imensos projectos incompletos e, na verdade, era só mais um bocadinho de esforço e valeria a pena.
Por fim, é ver coisas, ver exposições, espectáculos, ver o mesmo filme três ou quatro vezes e tentar vê-lo de maneiras diferentes, ler, ouvir música de géneros diferentes, sem ser apenas aqueles que costumam ouvir. Depois é não desistir – o que está ligado com aquilo de conseguir fazer projectos até ao fim.
Conheço muitas pessoas, até da minha idade que se apaixonam, por exemplo, por Pintura, começam a fazer um quadro; a meio do quadro apaixonam-se por Cinema, começam a ver imensos filmes e começam a tentar pensar num filme; a meio do filme apaixonam-se por Fotografia e lá vão eles. Uma coisa tão simples como tu tentares acabar algo quando já não estás tão entusiasmado, faz toda a diferença.
Manta de retalhos – O que, mais uma vez, vai ter com a tal disciplina. A disciplina dá liberdade. Muitas pessoas acham que ser criativo ou ser artista é ter a criatividade a pairar no ar.
Beatriz – É o mito da inspiração. Claro que é diferente quando estás inspirado, quando parece que as estrelas estão alinhadas e parece que estás a fazer a coisa certa e é incrível, mas no dia-dia não podes só criar quando estás assim, porque é um momento que acontece de vez em quando e é muito incontrolável.