João Paulo Esteves da Silva é pianista e compositor de Jazz, escritor e professor de piano na Escola Superior de Música de Lisboa. Convidei-o para uma conversa informal onde pudéssemos pensar sobre a leitura, como nos tornámos leitores, dando primazia à incompreendida poesia e como semear a sensibilidade para a arte.

Espreitou-se-lhe o pensamento numa tentativa de contribuir com mais uma migalha para a aproximação de alguém, que nos calhe ler, à arte, à leitura tomando o percurso do próprio como ponto de partida.

Ambos gostamos de tagarelar pelo que se aconselha o preparo de lunetas, retirar os ponteiros ao relógio e a ingestão de chá de infusão.

Manta de Retalhos – João, eu queria conversar contigo precisamente pela poesia, pois é da poesia que as pessoas estão mais distantes. Quando chegam ao meu curso, por exemplo, uns dizem que não gostam porque não entendem. Há aqui um afastamento entre o autor e o público leitor. Na tua poesia eu encontro muita naturalidade; o que aproxima o leitor. Tu escreves como quem fala. Como se estivesses num diálogo interno, com o outro, ou com quem passa, e usas as palavras de todos os dias. Não fazes nenhuma construção codificada.

João Paulo Esteves da Silva – Sim. É bom de ouvir, isso. Não sei se faço de propósito. Nalguns aspectos sou capaz de ter cuidado com isso. É uma coisa de que gosto. Mesmo nas coisas mais trabalhadas formalmente. Há poemas que são bastante trabalhados do ponto de vista da forma. Às vezes escrevo sonetos ou coisas com rima em que há um trabalho sobre a estrutura do poema, mas tens razão; que eu só fico satisfeito quando consigo fazer isso sem perder a naturalidade da língua. Como se fosse falado, sim. Que não esteja a entrar numa linguagem só literária.  Também não sei explicar porquê, mas não fico satisfeito com isso. Tento fugir disso. Tento que as coisas, mesmo formais, fluam como uma conversa. E aí tens razão.

Manta de Retalhos – Isso nasceu naturalmente, deste conta desse processo?

João Paulo Esteves da Silva – Eu já não sou novo. Esta coisa da escrita é das coisas que começa mais cedo.  Do contacto com a literatura ou das histórias que me contaram quando era criança. Uma pessoa é literata, entre muitas aspas, desde muito cedo. Depois, se isso se manifesta mais tarde em termos artísticos e públicos já é outra história. Mas o trabalho da língua é um trabalho que vem de muito longe.

Isto para dizer que quando olho para trás, vejo que já passei por imensas fases. E esta fase de que estás a falar é uma fase, relativamente recente, em que me apeteceu, não é bem me apeteceu, mas em que eu não me importo de partilhar o que estou para aqui a escrever, o que não acontecia antes dos trinta e tal anos. Não quer dizer que eu não tenha escrito coisas antes disso, mas até lá, haveria uma ramificação, talvez folhas, mas ainda não frutos, não sei. Houve uma altura em que eu senti que me podia espalhar. E nos últimos vinte anos essa preocupação, essa coloquialidade é de facto uma característica. Não é que eu tenha trabalhado conscientemente esse aspecto. Quando escrevo qualquer coisa, tendo a considerar que a coisa está feita quando, ou fico contente, ou não me apetece rasgar, ou vomitar, ou deitar fora, e reparo, à posteriori, que quando não me apetece rasgar nem deitar fora é precisamente quando atingi esse equilíbrio, pode-se dizer, entre o engenho e a naturalidade.

Manta de Retalhos – É muito engraçado porque é o ponto mais gritante que eu sinto na tua poesia. Há uma beleza natural, mas também se a sente quanto tu tocas.

João Paulo Esteves da Silva – Mas, por exemplo, na linguagem que tu dizes de todos os dias acontecem naturalmente combinações formalmente complicadíssimas e, de certa maneira, é uma das coisas que me fascinam, os trocadilhos que surgem espontaneamente, as pessoas mais ou menos talentosas para fazer jogos de linguagem. Também sou um grande apreciador, de longa data, disso, e é uma das coisas que sempre me atraiu. O aspecto lúdico e instrumental da linguagem.

Manta de Retalhos – Eu também gosto, do ponto de vista da construção, do ponto de vista do exercício, de todos os pontos de vista, na realidade. As coisas têm várias perspectivas e várias fases. Tudo é interessante, mas na comunicação com o público perdeu-se aqui qualquer coisa.  O público deixou de entender. Na escola, a poesia não é bem ensinada, na minha opinião. Os alunos são ensinados a analisar a forma e não o conteúdo, por exemplo, e ficam sem perceber nada. Eu lembro-me de chegar à universidade e a professora de Estudos Literários dizer-nos: esqueçam tudo o que aprenderam até agora. Mas a verdade é que tu fazes trocadilhos, fazes brincadeiras, mas que são entendíveis. Posso dizer-te que já trabalhei um livro teu em aula com alunos estrangeiros e foi muito bem recebido. Portanto, as tuas palavras, os teus jogos são entendíveis.

João Paulo Esteves da Silva – Fico feliz por saber.  Talvez não tenha sido sempre assim ao longo destes últimos anos.  Não sei se vai continuar a ser assim.  Espero que sim.  Achei isso fantástico. Os textos que eu escrevia, não sei, no princípio do ano 2000, eu próprio os achava um bocado sobrecarregados e difíceis de ler, mas não fiz nada de propósito para deixar de ser assim, houve uma evolução natural. A vida foi andando, e eu acho que houve um ganho de musicalidade, na escrita.  Costumo falar de uma ponte entre a música e a língua e essa ponte talvez tenha… bem, houve uma altura em que eu não sabia da existência dessa ponte, e vivia as duas coisas separadas.  Ou fazia poesia ou fazia música; depois, a certa altura, as duas começaram a comunicar. Mas essa comunicação nem sempre é plena, às vezes há passagem, outras vezes não. A língua aproveita mais da música ou vice-versa; outras vezes, a ponte pode estar bloqueada e

surgem alguns problemas de leitura.  Há poetas que eu gosto de ler e que são considerados poetas herméticos. Gosto de alguns franceses; portugueses não há assim muitos «herméticos» que eu goste de ler, mas Mallarmé, por exemplo, sim. E até se tirar alguma coisa de um poema de Mallarmé, é preciso lê-lo umas quantas vezes. Se bem que tenha de haver, logo de início, uma espécie de prazer formal no encontro, ” não estou a perceber muito bem o que está aqui a ser dito, mas é belo.”, senão também não temos vontade de ir mais além. E há poetas assim, difíceis. Difíceis, mas belos.

Manta de Retalhos – Claro que sim.  A minha preocupação com esta aproximação entre autor-leitor existe por que enquanto professora, naturalmente, quero aproximar a leitura de todos os géneros, da poesia em especial, a todas as pessoas. 

João Paulo Esteves da Silva – Pois, claro. 

Manta de Retalhos – E há uma grande recusa. Há não só uma grande recusa das próprias editoras como do próprio público.  Foi um dos grandes entraves, na altura,  quando o Diogo quis publicar o livro de poesia (ContraBaixo). Poucos queriam publicar um livro de poesia. 

João Paulo Esteves da Silva – Poesia é uma coisa que…

Manta de Retalhos – Que não vende.

João Paulo Esteves da Silva – Está catalogada como não vendável.

Manta de Retalhos – O que dirias a alguém para aprender a ler poesia?

João Paulo Esteves da Silva – Boa pergunta!  Acho que não sei se saberia o que dizer a alguém, alguma coisa assim genérica para ajudar alguém a ler poesia.  Tinha que ver caso a caso, tinha que conhecer esse alguém e experimentar.  Experimentar o que é que resulta do contacto com este ou aquele poema e ir tirando algumas conclusões conforme as facilidades e dificuldades que surgissem.  Há-de haver pessoas que estão abertas na altura que vais ter com elas e começas o encontro. Depende da idade, depende do que elas já fizeram antes. Raramente um encontro é um encontro absoluto. A pessoa já tem um passado.  Não sei se tu ensinas miúdos pequenos. 

Manta de Retalhos – De todas as idades. 

João Paulo Esteves da Silva – De todas as idades.  Tens aí todo o tipo de casos. 

Manta de Retalhos – Se posso dizer alguma coisa para te ajudar…

João Paulo Esteves da Silva – Sim, sim. Olha, ajuda-me porque a pergunta é difícil. 

Manta de Retalhos – Quando são adultos, posso dirigir o discurso de modo mais directo. Então, posso começar por lhes dizer que felizmente, hoje em dia, o mercado é muito grande e há livros para todos os gostos. Podem ir a uma livraria abrir a capa, olhar, folhear, levar para casa aquilo que comunica à primeira vista e depois, não ler tudo de uma vez.  É a tal questão de um poema por dia. Não leiam tudo de uma vez porque se a dificuldade já é grande, não vamos engolir o livro todo de uma vez.  O estômago não processa. Há que considerar que o visual conta; ou os assusta ou os convida. Assim, sugiro um livro pequeno para começar.  Temos, por vezes, de ir do exterior para o interior.  Um livro pequeno, que seja simples, palavras simples.  Um livro como os teus, pois tu tens, de facto, esta beleza da simplicidade. E que não é fácil por mais que pareça.  Digo-lhes, então, que leiam um poema, só. De manhã, à noite, quando quiserem.  Que não se esqueçam que o poeta é um pintor.  E é como ver um quadro, o poeta escolhe as formas que não têm de ser todas lineares e objectivas, mas está a pintar.  Quando vamos ver um quadro já temos de esperar alguma forma não convencional e a poesia é, também, contemplação. Então, depois ensino-os a pararem, a lerem o poema, mas: “parem, observem as pessoas, a paisagem, aproveitem o momento de silêncio só para ouvirem o vento bater no cabelo” -e essas coisas que instigam os sentidos. 

João Paulo Esteves da Silva – A poesia.  A maior parte dos poemas convidam, de facto, a uma saída da situação habitual.  É desrotinar um bocado. Tem a ver com certos momentos dentro dos ciclos da rotina, em que se pode ter algo que abra uma janela para fora do ciclo. Por alguma razão, as pessoas têm necessidade disso e a poesia há-de abrir umas janelinhas, sabe-se lá sobre o quê. O que eu acho é que depende muito de cada um e as pessoas, em relação à poesia, podem estar em patamares diferentes.  E há uns que estão muito abertos à poesia e a quem tu mostras um poema e eles vão entrar em ressonância e a partir daí tu podes escavar e comentar e fazer com que o proveito do poema seja ainda maior.

Há pessoas que podem estar, à partida, bastante fechadas ao poema e eu aí não tenho truques. Não saberia o que dizer.  Faz-se tentativas. Substitui-se o poema, experimenta-se outra coisa. 

Há outra coisa, que não é muito simpática, mas eu tenho consciência disso: a poesia, exactamente por tocar em zonas muito sensíveis da nossa alma ou corpo-alma, não é uma coisa inócua e pode ser perturbadora para algumas pessoas, pode ser destruidora para outras e pode ser completamente indiferente para outras. Há pessoas que eu acho que nunca se vão abrir à poesia, não sei. Só por alguma palavra mágica.  Também não se pode perder a esperança. 

Eu sei que há pessoas tão sensíveis à poesia, a quem a poesia faz mal. Faz-lhes mal por uma questão de dose, de overdose. E digo a mesma coisa para a música.  Há níveis perigosos de intensidade emocional, às vezes, para determinados sistemas digestivos. Demasiada beleza.  Não é para toda a gente.  Se há pessoas que são muito equilibradas e podem consumir tudo.  Não lhes faz mal nenhum. Também há pessoas que. …

Manta de Retalhos – … que têm uma química sensível. 

João Paulo Esteves da Silva – Têm uma química sensível e a quem a poesia pode, eventualmente, fazer mal.  Eu conheci poetas que viviam a poesia de uma maneira ao mesmo tempo muito bela, mas muito destrutiva.  Como se estivessem a arder. É essa a sensação que dá.  São pessoas em chamas.  E a isso aí, não digo nada. Vou buscar um copo de água e deito por cima.  Tento deitar um bocadinho de água na fervura.  Eu acho também que a qualidade… não sei se posso falar em qualidade… mas a poesia que me interessa, normalmente, é poesia onde esse perigo espreita, como se fosse um convite a andar em segurança relativa sobre abismos. Paisagens bonitas e tal, quedas iminentes, mas vais seguro por aquele caminho. Um poeta pode ser um guia de confiança, mas não há muitos que o sejam.

Manta de Retalhos – O que pensas da questão do «eu»? Tu usas muito o «eu» e os jovens, não só os jovens de idade, mas quem se quer aproximar da poesia ou quem quer tentar os lances da poesia começa muito pelo «eu».

João Paulo Esteves da Silva – Sim, sim.

Manta de Retalhos – A verdade é que quem se diz entendido, diz que é necessário esse afastamento do «eu» porque senão é um desabafo em forma de verso e não poesia a sério, pois a poesia a sério precisará, como qualquer arte, desse distanciamento, desse olhar objectivo de construtor.

João Paulo Esteves da Silva – Eu conheço essa teoria. Não é despida de algum acerto essa ideia das fases da maturação poética, ou da maturação em que o adolescente começa por escrever sobre si próprio, depois consegue o diálogo amoroso em que aparece um «tu» e o interesse pelo outro até que, finalmente, vai interessar-se pelo colectivo e poder escrever epopeias, por exemplo, ou teatro. 

Enquanto teoria descritiva formal do que se está a passar em determinado poema ou determinado poeta, quando se vê as fases pelas quais ele passou, pode servir para desenhar mapas e pode ajudar a localizar as fases de algum poeta ou de alguma poesia.

Em termos de valoração estética ou artística, acho que bate ao lado. Com a agravante que, neste caso, os juízos estéticos costumam misturar-se com a condenação moral. Não é por ser um poema escrito na primeira pessoa ou em que apareça um diálogo «eu-tu» ou um «nó» que o poema é mais aberto ou mais fechado ou mais virado sobre si mesmo, nem nada disto faz que o poema seja bom ou mau. Mas mesmo do ponto de vista psicológico, as análises deste tipo, costumam falhar, na minha opinião.

Por que eu posso falar do colectivo, de Portugal, por exemplo, escrevo poemas sobre… o meu interesse é o meu povo, é a minha pátria. Muito bem. Mas eu posso estar a usar o meu povo como uma projecção pessoal do meu «eu» engrandecido. Isto num caso de megalomania estranha e de pouco interesse pelos outros. Estou a servir-me de termos colectivos ou de substantivos colectivos para, no fundo, não sair de mim próprio. Pode acontecer, pode não acontecer e posso estar a sair de mim próprio escrevendo poemas na primeira pessoa, porque, pelo menos para mim, os pronomes funcionam como pequenos automóveis ou barcos. Mais barcos. Mais bonito ser barcos em que se viaje. 

Manta de Retalhos – E se dá a direcção.

João Paulo Esteves da Silva –  E se dá a direcção. O «eu» dos meus poemas não tem que coincidir com o fulano que escreve os poemas, não tem que coincidir com o João Paulo Esteves da Silva. Eu posso chamar «eu» a quem quiser. Hoje em dia, está na moda chamar «tu» a ti próprio, não é? Talvez para fugir a essas críticas.

Manta de Retalhos – Sim, é uma técnica.

João Paulo Esteves da Silva – É uma técnica. Tudo isso são técnicas e o que eu acho que é giro, que é interessante, é exactamente jogar com todas essas possibilidades de se saber o que é que se está a fazer com a língua. O que é que está a acontecer emocionalmente. Como que este poema funciona.? É preciso haver razões poéticas para um poema estar na primeira pessoa. Às vezes um poema não funciona precisamente por estar na primeira pessoa e, então, põe-se na terceira pessoa e tal. E já funciona, e vice-versa. Isso acontece-me na feitura dos poemas com que eu não estou satisfeito. Não pode ser, os verbos não podem estar na primeira pessoa, põem-se na terceira pessoa e já funciona ou vice-versa e esse tipo de questões.

Manta de Retalhos – E há aqui outro tipo de confusão, já do ponto de vista de quem vê/lê de fora: a partir do momento que o poeta escreve como um «eu» é porque está a falar sobre si próprio, o que não ajuda nada o leitor a analisar o poema em si. 

João Paulo Esteves da Silva – No fundo, o que está em causa, é tudo depender do nível de profundidade, do domínio ou, melhor, da liberdade com que uma pessoa trabalha a sua língua.  

E não tem a ver com esse pormenor dos pronomes. Tu podes estar a escrever um poema na primeira pessoa e ser totalmente universal, porque a tua vida e o teu trabalho com a língua até aí to permitiu. A tua experiência com a tua língua permitiu-te escrever na primeira pessoa e, eventualmente, o que está a ser dito pode dizer respeito a muitos outros.  

Pode ter uma dose de universalidade maior do que se estiveres a falar dos outros a quereres ser objectivo e seres totalmente superficial se a tua visão dos teus objectos for apenas tua, só disser respeito a ti…

Manta de Retalhos – Disseram-me uma vez que um poema deve ser um quadro que fica bem em qualquer sala. 

João Paulo Esteves da Silva – Em qualquer sala…  talvez seja querer demasiado…

No fundo, este alargamento, é modulável, quando digo universal, não digo ainda que universo, às vezes o universo podem ser vinte pessoas.  Há círculos.  Formam-se comunidades de sintonia poética às quais aquilo diz respeito.  E muitas vezes a valoração literária é feita em pequenas comunidades. 

Manta de Retalhos – Diz-me, tu tens filhos,  não tens? 

João Paulo Esteves da Silva – Tenho dois filhos.  

Manta de RetalhosDeste literatura aos teus filhos?

 João Paulo Esteves da Silva – Sim,  sim.

Manta de Retalhos – Ou melhor, começando por trás. De que forma lhes deste arte. Não digo cultura porque cultura é tudo o que adquirimos e tudo pode ser cultura, não é? Mas esse sentido humano, a sensibilidade para a arte? 

João Paulo Esteves da Silva – Eu, enquanto pai, e no caso especial, enquanto pai de uma família bilingue, tive a meu cargo a transmissão da minha língua, do português. E senti isso muito fortemente. Foi um papel de que eu gostei muito, ainda gosto de fazer. De ser responsável por pôr aqueles novos seres a falar português.

Manta de Retalhos – É muito giro.

João Paulo Esteves da Silva – Portanto, tentei caprichar. Contei muitas histórias e conversei muito. Fui atento nos primeiros anos, sobretudo. Li muitas histórias infantis de todos os géneros.

Manta de Retalhos – Portanto, foi direcionado.

João Paulo Esteves da Silva – Mas sem a preocupação de lhes dar a grande literatura universal, ia experimentando coisas que eles recebessem bem. Li muitos contos tradicionais daqueles livros antigos que eu tinha lido. E fui testando. Houve coisas que tentei e vi que eles, depois, faziam pesadelos.

Manta de Retalhos – Como por exemplo? 

João Paulo Esteves da Silva – Como por exemplo, o Pinóquio na versão original. Tive de desistir do Pinóquio porque não lhes fazia bem. À minha filha também, mas o meu filho, sobretudo, sofria muito com o Pinóquio. Mas também há histórias, entre aspas, horríveis que eu lhes contei e que passavam na boa.  Os contos de Anderson, de todo o género. 

Manta de Retalhos – E receberam ambos da mesma forma? Foi fácil? Pergunto, porque eu tenho em casa dois casos completamente diferentes um do outro. 

João Paulo Esteves da Silva – Sim. Eu também inventei muitas histórias. Agora estás a fazer-me puxar pela cabeça e pela memória. Eles também me pediam histórias e eu inventava. Algumas histórias mais tolas, outras menos, mas improvisava. Eles pediam, às vezes, a mesma história durante algum tempo.  As mesmas personagens podiam ir variando as suas aventuras. 

Com o meu filho tinha inventado aventuras com os bonecos da Playmobil. Tinham um nome, depois eu inventava uma aventura com as personagens. Havia o bandido – inspirado em histórias que eu tinha lido -, o dono do rancho e o cientista maluco. Depois, ia improvisando aventuras com isso. Improvisei também, portanto, bastante. 

 

Mais tarde, quando se tratou de lhes dar literatura. Eles têm o contacto com a literatura na escola. Eu ia acompanhando de lado, comentando e discutindo o que eles gostavam, o que eles não gostavam.  Também comentando as suas próprias tentativas de escrever. Ambos têm jeito e gosto em escrever, sendo muito diferentes um do outro.  E depois, de vez em quando, proponho coisas.  Proponho coisas para eles lerem, mas a minha casa é inundada de livros, quem quiser encontrar um livro por ali e tiver essa intenção é só passear um bocadinho e encontra o que ler. 

Mas, ainda hoje, eles pedem-me, sobretudo a minha filha, o que é que achas que eu podia ler? ” – e eu faço-lhe umas sugestões, dou-lhe uma pilha de livros e, normalmente, ela escolhe outra coisa que não fui eu que indiquei. Mas é importante. Que eu perca tempo a ver o que é que ela há-de gostar, faço-lhe um montinho. Olha isto, olha aquilo. E ela, Ahh! E acaba por encontrar uma escolha fora das minhas propostas.  

Manta de Retalhos – E contigo, também foi feito esse trabalho?  Sentiste-o? 

João Paulo Esteves da Silva – Comigo, criança? 

Manta de Retalhos – Sim.  Começaste a tocar cedo, logo aqui temos…

João Paulo Esteves da Silva – Sim.  Mas há também o aspecto da língua. O meu pai morreu há dois meses (nota: aquando da entrevista) e hoje em dia penso ainda bastante nele. Agora estás a perguntar-me isso e eu acho que a escrita tem a ver com uma relação com o meu pai.  Uma relação que começou muito intensamente.  Depois terá tido os seus problemas, como com toda a gente aqui e ali.  Mas o impulso inicial foi assim uma coisa fora do habitual.  A comunicação entre nós, entre o filho e o pai, houve ali um milagre que se passou muito cedo. 

Só para te dar um exemplo, há gravações comigo a grunhir umas palavritas, dizem que sou muito novo, que para aí com nove meses já dizia umas coisas, e eu estou a chatear o meu pai que está a recitar Álvaro de Campos ao microfone.  Ele gostava de recitar e de ler poesia. Gravava-se a si próprio, para além de escrever coisas, mais de filosofia.  De vez em quando, um ou outro poema para se divertir, mas o lado dele era mais a filosofia. Portanto, era um homem de letras, o meu pai. 

Manta de Retalhos – Quando eu era mais nova também me gravava.  Quando decorava e trabalhava os textos de teatro. Para ver como aquilo estava. 

João Paulo Esteves da Silva – Sim, sim.  O meu pai teve muito isso.  Eu não.  Só mais tarde ou hoje em dia é que gravo qualquer coisa, mas o meu pai tinha essa coisa de se gravar a si próprio a ler, a cantar. Mais tarde, quando eu comecei a saber fazer uns acordes na guitarra, acho que há para lá uma gravação com ele a debitar Manuel Alegre e eu a fazer uns acordes por trás. Deve ser a minha primeira gravação enquanto músico.  Não é a tocar piano, mas sim a fazer uns arpejos atrás do meu pai a ler poesia. 

Portanto, houve isso e também a minha avó que me contou muitas estórias.  Tive essa sorte.  Era também grande consumidor de histórias das que eram para adormecer e das que não eram para adormecer.  Gostava muito que me contassem histórias.  Lembro-me de ainda não ler. Portanto, tinha entre os três e os quatro e de fazer um jogo: ter aprendido a história de cor e fingir que estava a ler. Acho que aprendi a ler também com isso.  Ia controlando a mancha gráfica, ia debitando. 

Manta de Retalhos – A minha filha também era assim. Também decorava e lia para nós como quem estava a ler de verdade. 

João Paulo Esteves da Silva – Há muitas crianças que fazem isso.  Eu fiz isso com a música para mal dos meus pecados. Aprendi muito cedo a tocar piano e a leitura, leitura de música, não entrou logo porque eu decorava as peças e depois fingia.  

Manta de Retalhos – A Matilde é assim, o Diogo não, mas a Matilde sim. É engraçado. E a música? Como é que…? 

João Paulo Esteves da Silva – A música vem do outro lado, ou melhor, vem dos dois lados. Do lado da minha mãe todos são pianistas, todos. Havia piano lá em casa.

Manta de Retalhos – Era quase inevitável, portanto. 

João Paulo Esteves da Silva –  Não era necessariamente inevitável porque fui viver para casa da minha avó aos quatro anos e a minha avó, o dia-a-dia dela, sobretudo, as tardes dela eram a dar aulas. Era uma senhora que dava aulas em casa, de piano. Eu, na minha infância, habituei-me àquela coisa das aulas de piano todos os dias. O piano estava sempre a tocar e, sem quase dar por isso, aprendi também.

P’raí com quatro anos aprendi a tocar piano dentro daquele ambiente de ir ao piano, mas não era uma coisa que me apaixonasse na altura. Aprendi a tocar piano. Era uma coisa que na altura até me pesava, porque o ambiente do piano é uma coisa pesada. Pelo menos naquela casa era. O ambiente dos virtuosos, dos pianistas clássicos era uma coisa que não me atraía por aí além, mas aprendi a tocar piano e tocava nas audições. Sendo que gostava de outras brincadeiras, muito mais do que tocar piano.

Mais tarde descobri a música, mas foi só mais tarde. Acho que foi na ida para África.  Fomos, com os meus pais e o meu irmão, dois anos de comissão. O meu pai foi chamado para a tropa e vivemos dois anos em Luanda. Em Luanda é que a música me bateu, assim forte. Mas exactamente porque não havia piano.

Havia um ambiente de música que me chamou e no qual me apeteceu participar, mas era o ambiente das canções. O meu pai tinha muitas canções a tocar em casa. Canções francesas, Sérgio Godinho, José Mário Branco, Zeca Afonso, os Beatles, o raio que o parta e também o convívio entre os amigos. Havia muitas reuniões nas noites quentes, muita gente, ou em casa de uns, ou na nossa casa, ou em casa dos outros, à volta dos copos. E um pegava na guitarra. Cantavam. Havia um ambiente de cantigas.

Mas, se quiseres a minha biografia musical em mais quatro palavras: eu aí gostava de cantigas. À vinda, no regresso a Lisboa, entrei para o liceu e no início da adolescência surgiu aquele impulso de criar conjuntos com os colegas. Um tocava bateria, eu próprio também tocava bateria e guitarra elétrica. Ouvíamos os grupos da altura, os Pink Floyd, Traffic, tive a minha fase Beatles. Era fanático pelos Beatles.

 E aí, a querer tirar a música dos discos, a aprender os acordes, a imitar, é que reparei que tinha um avanço desgraçado no piano em relação à guitarra. Já nessa altura era muito mais pianista. Quisesse ou não quisesse, eu sabia tocar piano. As coisas corriam muito mais depressa no piano. E foi a partir daí. 

Depois foi crescendo a vontade de aprofundar, de voltar aos estudos mais formais. A minha mãe ensinava-me à distância, mas sempre ensinava. Desde que ela se mantivesse na cozinha e eu na sala de piano… ela dizia-me umas coisas e eu, Ok, ok! Tivemos uma relação professor-aluno bastante interessante. 

Manta de Retalhos – Pois, isso tem o seu lado belo e o seu lado menos belo.

João Paulo Esteves da Silva – A coisa foi assim até eu fazer o meu exame de 6º grau do Conservatório. Fui aluno da minha mãe, entre aspas, desde que ela não chegasse ao pé de mim para comentar, porque aí a tensão podia aumentar.

Manta de Retalhos – Eu compreendo-te.

João Paulo Esteves da Silva – Mas desde que ela estivesse ou na casa de banho, ou noutro lugar – nós tínhamos uma arquitectura de casa que permitia isso -, eu ia tocando e ela dizia: Legato! Staccato! Mão esquerda! e não sei quê. Cuidado com esse acorde! e eu: Ok, ok, mãe

Manta de Retalhos – Fantástico! 

 João Paulo Esteves da Silva – Mas, de longe!

Manta de Retalhos – Eu tenho isso com o Diogo. Não na música, mas na escrita.

João Paulo Esteves da Silva – Pois, pois. É isso! Depois, foi-se tornando cada vez mais sério até hoje.

Manta de Retalhos – Achas que a música desatou a escrita ou achas que se desenvolveu de forma independente. Elas têm relação.

João Paulo Esteves da Silva – Elas têm relação. Durante a minha adolescência era como se estivesse a correr em dois rios paralelos:  ou fazia uma coisa, ou fazia outra e houve um momento em que cheguei a uma altura de crise na música. Sentia que tinha de resolver certos problemas musicais, ou seja, encontrar a minha música, ser eu. Aliás, não é de encontrar, mas de estar à altura da música que eu já ouvia na altura. Que eu ouvia por vislumbres. De vez em quando ouvia-a e: Ah! É aquilo! Mas logo desaparecia. 

Foi uma crise que durou a bastante tempo. Corresponde à minha ida para França durante oito anos, tempo em que andei à procura de uma maneira de estar na música, em que eu pudesse usufruir da música sem me matar para lá chegar. Foi essa a minha luta. Foram para aí oito anos em que praticamente não escrevi. 

A escrita ficou à espera até chegar o ponto em que eu: Ah! Aqui está a música! Ela apareceu!

E a partir daí a música deixou de ser um problema e passou a ser uma espécie de pano de fundo de que tudo depende e uma fonte de energia para tudo o que eu faço no resto da vida. E uma das várias coisas que, depois, foi buscar esse impulso, foi a escrita. Voltei a escrever à vinda de França para Portugal. Também contou para isso a alegria do reencontro com a Língua Portuguesa.

Mas, digamos que entre os vinte e os trinta anos pouco ou nada escrevia. Nem poemas nem textos cómicos; coisa que eu gostava também de escrever. Na adolescência, lia muitos textos cómicos.

Manta de Retalhos – Os textos cómicos são mais difíceis de escrever, diz-se. 

João Paulo Esteves da Silva – O texto cómico mais na veia surrealista, ou do nonsense. Eu sou grande fã de Lewis Carroll, os trocadilhos e aquelas coisas. Era grande fã desde muito cedo, desde os doze anos. Fazia textos em escrita automática; coisas que o meu pai lia e, depois, ria-se muito. E eu continuava a escrever daquilo para ele se rir. Era ele o meu público.

Manta de Retalhos – Sentes que tens alguns comportamentos idênticos na escrita de música e na escrita literária ou sentes que não, que têm naturezas independentes?

 João Paulo Esteves da Silva – Não são totalmente independentes, mas eu acho que há um jogo de fundo e figura entre a música e a escrita, no meu caso, em que a música tem de estar sempre no fundo, mesmo quando a escrita está em primeiro plano e nas alturas em que a música consegue ser fundo de si própria. Mas eu acho que, depois, na circulação, na alternância das duas actividades, mesmo quando faço música, há aspectos da escrita que vão tornar-se fundo daquilo que eu faço na música e que se mantém lá, por trás, escondido,  naquilo que me sai em melodias e ritmos; e a música, por seu turno, é também incorporada na minha experiência com a escrita.

Portanto, a coisa faz uma espécie de espiral. Acho que a princípio não há escrita, há música. A linguagem e a escrita vão aparecendo à medida que os problemas e os obstáculos vão surgindo na vida.

Manta de Retalhos – Eu acho muito curioso porque olhando para ti, e digo olhando para ti porque quando te leio, sinto o teu movimento pela cidade, imagino que possas realmente escrever à frente do rio.

João Paulo Esteves da Silva – Sim, sim.

Manta de Retalhos – Imagino que possas, realmente, andar com um caderninho e às vezes no meio das pessoas, estás a reparar, estás a anotar alguma coisa. Sinto esse movimento. Tal como sinto a estória quando tu estás a tocar.

João Paulo Esteves da Silva – Sim, é isso. Então, é isso.

Manta de Retalhos – Tu crias um diálogo. Estás a tocar e visualizas para quem te está a ver. Tu falas, não é? Enquanto tocas?

João Paulo Esteves da Silva – Sim, sim.  

Manta de Retalhos – Pelo menos mexes a boca.

João Paulo Esteves da Silva – Sim, sim. Há esse lado vocálico. É involuntário, mas está lá. Há um lado articulatório naquilo que eu toco. O piano também se presta a isso. O próprio instrumento, piano, é muito linguístico. Para o mal e para o bem. Produz aquela separação entre os sons que é próprio das chamadas linguagens articuladas. E isto é mais característico do piano do que, por exemplo, do violino que produz facilmente uma sonoridade mais fluida. 

O piano tem aquelas pancadas que nós damos quando falamos e batemos com a língua nos dentes e no céu da boca; com articulação, com os bloqueios, os desbloqueios e as explosões. Esse aspecto está bem patente no piano, é um instrumento bastante linguístico. 

Agora estou a lembrar-me da época romântica, quando surgiu este instrumento, o piano moderno, que Mozart e Beethoven ainda não dispunham.  A época de Schumann, Brahms, Chopin; todos estes compositores tinham uma ligação forte com a palavra. Em Chopin, menor, talvez, mas em Schumann muito forte. Em Schubert, também. Grandes escritores de canções, grandes consumidores de poesia.

Manta de Retalhos – E tu, nunca a prosa?  

João Paulo Esteves da Silva – Sim, muito.

Manta de Retalhos – Eu diria que a tua poesia poderia ser transformada em prosa. 

João Paulo Esteves da Silva – Sim, escrevo prosa. Escrevo bastante prosa. 

Manta de Retalhos – E nos teus alunos, o que é que te inspira? O que procuras transmitir-lhes?  

João Paulo Esteves da Silva – Eu acho que a minha atitude para com os alunos é de atenção. Escutar o que está ali; que relação é que eles estão a ter com a música, com o instrumento, com o próprio corpo e diagnosticar as dificuldades. No fundo é isso.  E ver onde é que eu posso intervir. 

Daí que eu seja um professor sem receitas e sem método. Claro que, para efeitos oficiais, há programas.  Para mim, isso é apenas uma formalidade, pode ajudar, pois temos de aprender as escalas todas, os acordes todos, os tons todos, determinadas coisas do repertório e etc. Mas não é isso que para mim é importante. O que é importante é estar atento ao estado da relação do aluno com a música e ver se de alguma maneira uma pessoa pode intervir para ajudar. 

 E disseste o que é que eu ganho com os meus alunos? Eu aprendo imenso com os meus alunos. Para já, há coisas que eles me mostram e que eu não sabia e aí já estou a aprender; depois, mesmo nesse processo de querer viver determinados problemas, muitos desses problemas também são meus. Posso estar um pouco mais avançado na resolução dos ditos, mas também são problemas um bocado gerais e eu, para os ajudar, tenho de me ajudar também, senão não os consigo ajudar. E então, quando a coisa corre bem ajudamo-nos também em círculo.

Há um círculo de progressão, às vezes não corre bem. Acho que é sempre possível fazer progressos, salvo em casos raríssimos de uma incompatibilidade total, de fechamento entre professor e aluno, que felizmente são raros, raríssimos.

Manta de Retalhos– E quando os alunos vão ter contigo, aqui a minha questão é: tanto na escrita…

João Paulo Esteves da Silva – Eu não tenho experiência em ensinar a escrever, ao contrário de ti. É mais com os meus filhos, ou um minúsculo trabalho de edição que às vezes possa ter com esta, ou uma ou outra pessoa que me pede sobre este ou aquele poema, este ou aquele texto, mas não é bem de professor/aluno. É mais um trabalho de edição, comentário. 

Manta de Retalhos – Quando digo que ensino a escrever, não acho que possa ensinar alguém a ser escritor.  Isso não sei ensinar.

João Paulo Esteves da Silva – Mas também podes tentar detectar determinados problemas que tu podes ver que podiam ser resolvidos e propor uma solução.  

Manto de Retalhos – Exactamente. É uma possibilidade. Normalmente, é o que eu digo: este é um caminho, não quer dizer que seja só este. Podem/devem aproveitar e depois através deste encontrar a vossa própria identidade, o vosso próprio processo.

E nesse sentido a minha questão é: os alunos querem aprender, mas querem aprender a serem escritores ou querem aprender a serem músicos.

João Paulo Esteves da Silva – Pois!

Manta de Retalhos – O que é que tu dizes? Eu sei o que digo, depois posso partilhar, mas o que é que tu dizes? Eu acredito que toda a gente pode escrever que toda a gente pode tocar, tocar bem, pode escrever bem.

João Paulo Esteves da Silva – Eu tentaria, tento, fugir a essa questão e tento ver o que a pessoa é no momento, ver se a pessoa já é músico.

Manta de Retalhos – Mas o que é que ela pode fazer para chegar ao seu objetivo de ser escritor, no fundo de ser um artista da escrita.

João Paulo Esteves da Silva – Eu acho essa questão dificílima e problemática.

Manta de Retalhos – Mas, às vezes, eles não têm onde se segurar e querem, sabes. 

João Paulo Esteves da Silva – É isso, é isso.  Eu não tenho, não tiro nenhuma regra daqui, mas, normalmente quando uma pessoa quer ser escritor como uma coisa que lhe é alheia, isso é mau sinal.

O que é mais fácil e onde eu sinto que o professor pode ajudar é quando lhe aparece um escritor, um escritor inexperiente, mas alguém que escreve por uma motivação interior para escrever. Escreva mal, escreva bem, se tem essa motivação interior para escrever, para tocar ou para compor, se isso foi aceso.

Depois, pode estar a enfrentar diversos problemas; ou porque o domínio da língua ainda é fraco, ou porque não leu ainda o que devia ler. Variadíssimos problemas podem surgir, mas tem, já de início, essa coisa, tem pulso para escrever. Quando o impulso é para ter o impulso para escrever, aí não sei se alguém pode fazer algo por ele. E não sei se também te aparecem casos destes. 

Manta de Retalhos – Também aparecem, muitos.

João Paulo Esteves da Silva Eu gostava de ser escritor. / Então, mostra-me lá.  / Ah, mas eu não escrevo nada. Terrível! O que é que tu fazes? Eu gostava de poder escrever. Nunca me apareceu ninguém assim. 

As pessoas que aparecem e que querem ser compositores e não têm nada para mostrar.  Queria ser compositor… assim ou assado. Aqui eu acho que estamos perante um nível de perturbação da personalidade, já com uma certa gravidade e não é do meu foro, estás a perceber?

Manta de Retalhos – Eu sou honesta. Eu acho que se consegue não ajudar a ser escritor, mas a despertar o olhar porque o escritor, compositor, pintor…

João Paulo Esteves da Silva– Sim, tu podes levar a pessoa a interessar-se por esta coisa, mas não lhe podes dizer: tu vais ser escritor.

Manta de Retalhos – Esse é o meu problema.  Às vezes dizem-me: Olha, Susana, escrevi isto. Achas que sou escritor?

João Paulo Esteves da Silva – Pois, eu não me pronuncio acerca disso. Eu digo, acho o teu poema assim ou assado, gostei muito ou gostei muito mais disto, mas aqui desta parte gosto menos. Este tipo de coisas. Mais do que o título geral: Tu és um poeta! Deixemos isso em aberto. Claro que há coisas tão extraordinárias que produzem uma simples exclamação. Com certeza já te apareceram pessoas com muito talento e tu só exclamas: Uau!

Manta de Retalhos – Sim, às vezes não estou ali a fazer nada. 

João Paulo Esteves da Silva – Isso acontece, mas é raro. Eu acho que enquanto professor tendo a deixar o futuro em aberto. Resolver e tirar os obstáculos. Quando o futuro está tapado.

Manta de Retalhos – Hoje em dia há uma outra problemática: as pessoas já têm acesso ao conhecimento, sabem organizar um discurso melhor do que antigamente, têm mais vocabulário, têm mais informação, têm contacto com uma série de linguagens e quando organizam bem uma frase com as palavras até bem bonitinhas, acham que isso é escrever. Aqui a dificuldade é dizer que aquela frase por melhor que esteja escrita e desenhada não representa…

João Paulo Esteves da Silva – … o lado artístico da coisa. Pois, não sei. Não teria métodos. Mas agora que me obrigas a pensar, despertar a sensibilidade para bons modelos: Vê o que se está a passar aqui. Qual é a diferença entre isto e aquilo que tu escreveste? Às vezes uma frase parecida: O que é o António Nobre está aqui a fazer? com este verso que podia ser uma frase ouvida na rua. Estou a lembrar-me de António Nobre, talvez porque ele foi um dos pioneiros da coloquialidade na poesia portuguesa.

Sim, tentar despertar atenção para o que faz um verso estar vivo. Está ali qualquer coisa. Está a crescer, não fica paradinho ali. Não é apenas uma frase. Às vezes a mesma frase posta noutro contexto não precisa de mudar nada, já funciona.  Isso tem tudo a ver com coisas que, não há segredo, é mesmo experiência e contacto com os modelos em que a gente vê a coisa acontecer. 

Há casos muito estranhos, como o caso do grande, famosíssimo Marcel Proust. Ele, a princípio, tinha grandes problemas consigo próprio em achar que escrita dele não valia nenhum e, depois, também, em torno dele, achavam-lhe a escrita muito banal. De facto, às vezes, tu comparas páginas que são quase a mesma coisa do que mais tarde ele descobriu e que deram “À lá recherche du temps perdu” mas que são paginas de um livro ainda em projecto, que é o chamado “Contre Sainte-Beuve“, onde ele escreve as mesmas situações, às vezes as mesmas personagens, e a sensação que dá quando tu comparas os dois textos escritos pelo mesmo escritor, é que se tratam de dois textos diferentes, não é? É que parece que, no projecto, está lá tudo mas falta ligar à electricidade. Está apagado. E lês a página ao lado da “Recherche” e, ops, o comboio elétrico está a funcionar. 

E pronto! Ele mudou conjunções, diminuiu frases, fez respirar. Tem a ver com a respiração da frase, com a acentuação, a maneira como as coisas se dispõem e, às vezes, mexes uma peça dali, e pões aqui e o todo funciona. Eu acho que isso é feito com a experiência, com a sensibilidade a este tipo de problemas e por comparação com modelos que funcionam.

No fundo é assim que se faz na música também. Nós aprendemos a improvisar a ouvir bons improvisadores a improvisar e a ver que material é que eles usam e como o usam.

Manta de Retalhos – Temos de ver o que foi feito para dizer que queremos fazer e reinventar.  

João Paulo Esteves da Silva – Acho que é muito difícil, se bem que há-de haver uns quantos padrões e regras que podem ser úteis, mas isso nunca substitui o estar atento ao concreto, ao que se está a passar ali, de facto, naquele texto que tu achas que não funciona.  Há-de estar ali a passar-se qualquer coisa muito concreta que há-de estar a impedir de funcionar. Às vezes nunca vai funcionar com aquela pessoa, não sei.  Às vezes é só: Olha, e se tu fizeres…  e funciona.

Manta de Retalhos – Tu deitas fora, rasgas ou guardas?

João Paulo Esteves da Silva – Rasgar, não, mas desde que escrevo no computador é uma maravilha. Com um simples gesto e aquilo é como se nunca tivesse existido.  É claro que acontece.

Manta de Retalhos – Eu não faço isso. Quando era miúda fazia, depois deixei de fazer e ensino a não fazerem. 

João Paulo Esteves da Silva – Há coisas que eu sei que têm problemas e que eu deixo estar, mas é porque há uma esperança que haja ali qualquer coisa, e que vou voltar a olhar para aquilo daqui a uns tempos.  Às vezes nunca vai dar nada, mas fica lá na mesma. Mas depois há aqueles dias em que escreves uma página e: Isto hoje não está a dar. Tchau! E apago.

Manta de Retalhos – Eu aí continuo a dizer: Naquele dia não deu, mas podes voltar a olhar, destruir metade e ir noutra direcção.

João Paulo Esteves da Silva – É verdade, é verdade! Também me consola saber que o meu melhor foi perdido para sempre. Nunca ninguém há-de saber.

Sim, é interessante, nunca se pode saber. Por alguma razão é raro que as melhorias sejam acrescentar, normalmente é a retirar.  

Manta de Retalhos – Uma preocupação, uma vontade que tenho é cultivar desde o início: tens filho és, filho, cultivas, foste cultivado. Voltando, de certo modo, atrás, que conselho darias a alguém que não tem contacto com arte?

Isto porque quando há contato, a aproximação é mais fácil e natural, ou não, mas digo que é mais fácil por existir um padrão, modelo que se pode observar e imitar.  Mas para quem não tem, para quem pode ter mais dificuldade em abrir a porta para que se lhes diga, Olha, vai por ali, depois viras à direita, à esquerda e já encontras uma circunferência maravilhosa! Já sabendo que somos todos diferentes, que sugestões?

João Paulo Esteves da Silva – Acho que é proporcionar o contacto, pôr em contacto e estar atento ao resultado. Ter uma aljava com várias setas, disparar em várias direções e sentir a reacção do outro.

Eu tenho dificuldade em imaginar pessoas sem contacto com a arte, mas acredito que haja. Algum contacto há-de haver sempre, não é? Penso eu, não sei.  Terias de me dar exemplos de pessoas sem contacto nenhum, porque as pessoas hão-de ver um filme, ter ouvido uma canção, nem que seja na feira ou, então, pessoas que perderam contacto.

Manta de Retalhos – Também. Há pessoas que simplesmente passam por e não se entrelaçam.

João Paulo Esteves da Silva – Ou que têm um contacto, mas não entram em ressonância, não é? Eu acho que temos de ser humildes e por vezes não está na nossa mão ajudar certos casos. Acho eu. Por muito que seja a nossa vontade. Porque nos casos de não contacto, os caminhos, muitas vezes estão tapados. Pode haver casos de cegueira, surdez, de sensibilidade cutânea ao nível, se calhar, psicológico e a pessoa passa por um quadro bonito, olha para aquilo e vê sei lá o quê, não lhe causa nenhuma experiência especial.

Tu podes tentar descobrir o que é que está tapado, possivelmente tentar abrir os caminhos. Normalmente, no contacto com a arte é a pessoa toda que está em causa, mas, às vezes, com problemas mais aqui ou mais ali. Problemas de sensibilidade de foro musical, da sensibilidade visual, de sensibilidade mais assim ou mais assado, às vezes o stress.

Imagino que a uma pessoa extremamente tensa não lhe cabe mais nada. Está cheio dos seus próprios problemas e não está aberto à arte.  Às vezes, fazer exercícios de descontracção, aprender a respirar, ajuda. A pessoa, se não respira não consegue apreciar arte. Claro que se não respirar morre, mas se não respirar suficientemente bem se calhar não consegue.

Manta de Retalhos – Mas há pessoas que nunca tiveram contacto com a arte formal e que conseguem coisas simples…

João Paulo Esteves da Silva – Há pessoas que têm um contacto com a arte que não tem nada a ver com aquilo a que chamamos arte no circuito artístico. No seu dia-a-dia têm uma sensibilidade artística com as coisas mais ínfimas.  Uma pessoa pode estar a olhar para um monte de pedra e estar a achar aquilo lindíssimo e por isso é que alguns pintam um monte de pedra e nós dizemos, Uau! Deve estar a ver coisas que eu não estava a ver.” Ou fotografam.  Isso acontece. 

Mas não tenho nenhum conselho geral. É mais o estar atento.  Estar atento com respeito e não confiar muito nas certezas que se foi adquirindo com as experiências anteriores. Estar sempre aberto a reconhecer que uma fórmula que funcionou pode, eventualmente, não ser adaptada ao caso presente. Experimentar, mas estar atento ao que se vai passando. Não estar fechado.

Tu que já tens muita experiência de ensino e de ajudar pessoas hás-de ter os teus padrões de ensino que te são muito úteis, mas também hás-de tê-los abertos que os padrões hão-de ter os seus limites, ter que desfazer aqui e ali, formar outros padrões.

Manta de Retalhos – Exactamente. Eu gosto de personalizar, mas quando é um grupo é sempre…

João Paulo Esteves da Silva – Pois, claro. Isso de ensinar um grupo, não há nada de mais difícil.

Manta de Retalhos – Eu tenho um esquema que vem do teatro. Faço sempre aquele esquema, mas digo sempre que é apenas uma porta de entrada. Dali para a frente não me arrisco a fazer mais nada porque acho que já é pretensa da pessoa que ensina. Mas posso explicar.

Faço um primeiro exercício para que as pessoas que não estão habituadas a olhar, a observar os sentidos, possam primeiro serem expostas e experimentarem. Dou-lhes uma fotografia – tenho esta relação com a imagem e com a música –  e digo-lhes que devem fazer uma observação atenta; depois duas listas. Uma lista a que chamo simbólica e uma outra lista objetiva e isto em modo de lista de supermercado. Digo em lista de supermercado por uma razão simples, porque os alunos começam a criar estórias de imediato, a terem ideias que registam automaticamente e não se o pretende.  Se lhes surgir uma frase, uma locução, podem anotá-la, mas se não o fizerem tanto melhor, pois estariam logo a delimitar as direções e depois não veem outras possibilidades.

Fazem, então, uma lista de tudo o que vêem objectivamente na fotografia, seja cor ou qualquer outro elemento mais concreto. Para a lista simbólica lembro-os de verem o significado de um signo por si e depois no todo, só para despertarem sensações e outros possíveis sentidos. Nessa altura lembro que os significados são como as pilhas, têm polaridade: uma porta serve para deixar entrar ou sair, uma sala está vazia por poder estar pronta a receber pessoas ou porque já as recebeu, e por aí fora.  Daí escrevem um texto. Do género que quiserem, pode ser o poema, uma carta, a primeira coisa que lhes sair com aquela primeira experiência, com o que se sentirem mais confortáveis

Essa é a primeira aula. No fim todos comentamos.  Eu sou sempre a última para não viciar a opinião de ninguém, dado que a professora é sempre tida como certa. Então falo só no fim.  “Primeiro falam vocês, por vezes estão vocês mais certos do que eu.”

João Paulo Esteves da Silva – Eles vão-se inspirar naquilo que tu dizes.

Manta de Retalhos – É.  E por vezes, até estavam a pensar numa coisa diferente, mas depois ouvem o que eu digo e, se for diferente do que tinham para dizer, já não vão por ali.

João Paulo Esteves da Silva – Pois, pois.

Manta de Retalhos – Há que deixar tudo em aberto. A segunda aula é uma aula de observação e vem de um exercício que fiz em teatro, em ambos os cursos. Trata-se de observar pessoas. Em Évora, também estudei em Évora, mandaram-me seleccionar uma acção e ficar a observá-la durante várias horas.

João Paulo Esteves da Silva – Pois, eu sei que os meus amigos do teatro fazem esse exercício.

Manta de Retalhos – Eu peguei nesse exercício e noutros que fiz no Balleteatro, juntei-os entre a minha perspectiva e reformulei. Os alunos vão para a rua e escolhem uma pessoa para observarem – claro que têm de tentar perceber se a pessoa vai ficar e gerir esses problemas técnicos; há até quem “persiga” o seu modelo vivo.

Nesse momento, em que estou a explicar-lhes o exercício, peço-lhes que reparem como estamos todos sentados à mesa, exactamente na mesma situação e todos têm a sua forma de estar, todos se sentam da sua forma, cruzam a perna na sua singularidade, bebem o café com a sua própria gestualidade, folheiam e pegam na caneta com a sua própria forma e essa forma de estar, essa gestualidade já nos fala, já é texto. Ficam todos a observar a gestualidade, a linguagem corporal, a sua e a do outro.

A ideia é que não construam a personagem só com o João ou com a Maria. Que pensem psicologicamente em quem é o João, quem é a Maria. O João é como é porque já passou por uma série de situações. As coisas têm de ter uma relação. Depois fazemos a mesma análise com o que estão de vestir, onde estão, o ambiente. Se a personagem tem uma camisa: pode estar abotoada até cima, o que pode ser um sinal de conservadorismo ou de que acabou de sair do trabalho ou, então, é simplesmente, uma pessoa clássica e gosta. Há que equacionar as possibilidades para aquele botão estar fechado e não antes aberto, o que não deixa respirar. 

Logo de seguida fazem o B.I.: nome completo, nome completo dos pais. Às vezes dão nomes muito curtos e eu questiono o motivo, De onde vem esse nome? Por que é tão curto? Começam a ligar estes elementos todos. A tua personagem tem namorado, namorada, quanto é que ganha? Eles nunca pensam nisto. Quanto é que ganham as vossas personagens, o dinheiro faz a vida da pessoa ou às vezes a pessoa vive além das suas possibilidades. Procuro pô-los a pensar nesses meandros todos, se têm irmãos (as personagens), se é o irmão do meio, se tem uma irmã mais velha.

Analisamos todo o puzzle de informação, se os nomes batem certo ou, e debruçamo-nos sobre a questão da coerência. Depois os medos, os desejos, a rotina de higiene pessoal, o que eu acho muito engraçado de usar e pode servir para acrescentar informação da personagem – aquela informação que é só a nossa, aqueles hábitos e manias que dão uma dimensão real e inteira.

Depois de registados os dados da dissecação vão para casa escrever. O único texto que escrevem em sala de aula é o da primeira sessão, a partir daí nunca mais escrevem em sala de aula, mas sempre em casa. Quando chegam ao curso, os alunos acham que sim, que vão escrever durante todas as aulas, mas não.  Têm de ir para casa, têm de ter tempo, têm de namorar aquela personagem, de pensar, pesquisar, descobrir.

Trazem, então, um texto com a primeira personagem na semana seguinte. Lêem todos, discutimos, vemos a coerência, procuramos incoerências a corrigir. Vemos se aquele primeiro texto pode realmente ser um primeiro capítulo ou se poderá vir no meio, dada a forma com que começam ou então rematam-se fronteiras.

Na fase seguinte, Ok! Já viram como fazer uma primeira personagem, agora pegam neste modelo e constroem uma segunda personagem já sem modelo-vivo, já têm os mecanismos para lá chegarem. E vão pôr essas personagens em contacto. Se essa personagem é o anti-herói ou não, já não sei, isso é uma decisão vossa, não sou eu que vou dizer.” 

Têm, naturalmente, de pensar no conflito, no assunto e eu digo-lhes sempre, Vamos imaginar que isto é um livro a sério. – se eles pensam que é um documento de gaveta, já não vão pensar a sério, já não se propõem com tanta seriedade. Para quem é que se dirige? Vamos imaginar que isto é uma entrevista: sobre o que é o vosso livro? qual é o tema? Fala do quê? O que é que querem dizer?

Abordamos um pouco a focalização, mas não muito. Apenas o suficiente para entenderem a questão da perspectiva, como utilizar o encaixe, a prolepse e afins, e para que percebam como podem brincar com esses recursos. Fazem, então, o exercício.

Menti-te há pouco, afinal ainda escrevem uma segunda vez em aula. É esta. Fazem um pequeno exercício à parte do seu texto em aula para depois aplicarem em casa no seu microconto. Imaginem, por exemplo, um blinddate, ou dois amigos, alguém que vai a um concerto e um deles gostou e o outro não, ou um chateou-se por alguma razão e o outro estava muito contente, mostrem essas duas visões diferentes.

Depois de aplicarem a focalização, direcionam-se para o encerramento do conto. E é mais ou menos isto o meu curso. 

João Paulo Esteves Silva – Pois, mas isso são técnicas e, se calhar, vai funcionar de modo diferente com cada um.

Manta de Retalhos – Claro.

João Paulo Esteves da Silva – Com essas técnicas vais ter casos e casos. Mas essas técnicas são como ensinar modulações e harmonias, como se constrói uma sonata. Fixe! Tu fazes ateliês ou cursos disso?

Manta de Retalhos – Sim, este é mais ou menos o meu curso inteiro. Não ensino literatura, é um curso de escrita e não acho que ensinar literatura ensine a escrever embora os conhecimentos de literatura ajudem ou possam ajudar.

João Paulo Esteves da Silva – Eu também tenho consciência plena que há coisas na arte que podem ser ensinadas e, essas coisas, que se ensinem o melhor possível. É o que tu estás a fazer. As coisas ensináveis, ensiná-las e não impedir que as coisas não ensinadas não aconteçam. Às vezes, também há professores que pecam por aí. Ás vezes, há qualquer coisa que está ali a fugir de controlo e que afinal é o que interessa e os professores, Ah, não, não! E estão a impedir que um Hemingway surja.

Manta de Retalho – Ah, sim, sim! Isso também acontece. 

João Paulo Esteves da Silva – Não é? Às vezes, até inconscientemente, de propósito, Eu não sou um escritor famoso, também não hás-de ser.

Há coisas que são ensináveis, coisas do lado formal, do lado estrutural. Na música há coisas que são transmissíveis e outras que são transmissíveis, mas não do modo estrutural, que passam entre as pessoas. Passam. E há contactos que proporcionam, estimulam ou catalisam o aparecimento dessa coisa e há outros contactos que impedem. E o bom ou mau professor está aí. Ter essa sensibilidade de não impedir que as coisas aconteçam quando estão a acontecer. Às vezes basta uma palavra para estragar muito.

Manta de Retalhos – É muito verdade. 

João Paulo Esteves da Silva – Às vezes uma opinião um bocado mais severa, às vezes injusta. 

Manta de Retalhos – Esse erro cometo mais facilmente com o Diogo do que com qualquer outra pessoa.

João Paulo Esteves da Silva – Sim, claro. Mas aí o nível emocional é demasiado intenso para se poder ter uma relação professor-aluno, por muito que tu tentes.

Manta de Retalhos – E há uma maior confiança. Eu tenho uma relação muito franca com o Diogo e ele sabe que quando vai tocar eu digo-lhe do que gosto e do que gosto menos.

João Paulo Esteves da Silva – É mais do lado dele. Se ele se conseguir pôr ao abrigo da tua opinião avassaladora, se ele se conseguir construir já com uma certa distância, podes dizer-lhe o que quiseres.

Manta de Retalhos – Às vezes sou um bocado dura. Por vezes ele está a desenvolver peças que são exercícios e eu digo-lhe, Falta qualquer coisa de novo, não sei se ouvia isto no carro.

João Paulo Esteves da Silva – Pois, pois, esse tipo de coisas. O modo como está a ser recebido depende sempre de quem está a receber; se ele tiver um escudo podes dizer-lhe tudo, podes mandar-me uma bomba atômica

Manta de Retalhos – Para finalizar, o que dizer a uma criança para que gosto de ler? 

João Paulo Esteves da Silva – Ui! Eu acho que é fazê-la ler. Eu acho que não saberia fazer uma criança gostar de ler, seria mais, tentar não a fazer detestar ler. E também dar o exemplo. É um bocado isso, é mostrar-lhe o quanto é bom ler, o quanto eu sinto prazer em ler. Portanto, o meu prazer também podes tê-lo.

Manta de Retalhos – Por que é que é bom ler?

João Paulo Esteves da Silva – Não faço ideia. Por que é que é bom ler? Eu acho que é uma possibilidade que nós temos. Uma possibilidade enorme, a da leitura. E sei que há culturas sem leitura e sem escrita onde as pessoas são muito felizes. Sei lá se não são mais felizes do que na nossa. Mas é uma possibilidade riquíssima. Abrem-se mundos.

E depois o nosso mundo é feito disso. Vivemos, nascemos num mundo alfabetizado nós somos feitos de letras, por assim dizer. E então, a leitura é um encontro, se calhar, às vezes, demasiado violento com aquilo que nós somos, de facto. Daí os perigos da leitura e também o prazer. A leitura abre abismos. Eu não sou uma pessoa muito à vontade para aconselhar assim como a panaceia universal: A leitura! Leiam, leiam que só vos faz bem! A leitura pode ser terrível.

O que eu acho é que na nossa sociedade é assim basicamente necessário, condição sine qua non, ler.  Não sei se não seria possível imaginar sociedades sem leitura, mas eu acho que nós somos feitos de leitura. Fecharmo-nos à leitura é um bocado não querermos nada connosco, acho eu, ou com uma boa parte daquilo que nós somos.

Depois, há aquela visão cósmica do mundo que eu partilho, mas é pessoal, não quero impor isto a ninguém, que o próprio universo é uma obra de literatura. – que é a visão judaica da questão.  Eu partilho; portanto, se isso for verdade, aí está uma boa razão para aprender a ler, não é?  Para não ser apanhado de surpresa.  Ter um bocado de consciência do que é que se está a passar.  Uma consciência aumentada. Aumenta a consciência, ler.

Aumenta o nível de consciência.  Isso eu posso dizer com toda a certeza. É bom ficar mais consciente? Não sei. Eu acho que é enriquecedor, no mínimo. E no meu caso não tenho hipótese, é como no caso da maioria das pessoas, é como respirar. Valorizar em termos de bem ou mal a leitura é como valorizar a vida.  É bom viver.  É condição.  Antes de ser bom ou mau, é estar vivo. É. 

Manta de Retalhos – Não te vou fazer aquelas perguntas típicas: quais são os teus temas…

João Paulo Esteves da Silva – Já sabes, já sabes.  melhor do que eu. 

Manta de Retalhos – Não, isso nem pensar.  Tu terás os teus cantos.  Mas para quem nos lê, do que te falta falar, o que te interessa abordar ainda? 

João Paulo Esteves da Silva – Eu não sei se tenho temas. À partida tenho só tendências, tenho manias, tenho a minha vida e a minha experiência, mas eu deixo que as coisas aconteçam e noto que em termos de temas os meus ouvidos e os meus olhos abrem-se a coisas diferentes conforme eu vou avançando na vida, envelhecendo, se quiseres.

Há coisas que aparecem hoje nos meus poemas que não apareceriam aqui há tempos atrás; há obsessões, claro. Obsessões com a própria língua, com o que é isso de ser português, o que é esta coisa; as minhas afinidades com a cultura judaica – são panos de fundo -, com as outras línguas, com a língua portuguesa;  o que isso significa em termos emocionais,  com as línguas estrangeiras também, em geral, com algumas mais em particular.  O que é que isso significa? Em que é que o mundo muda quando se muda de língua?

Esse tipo de temas são-me um bocado constantes. Depois o concreto do poema, se vai ser sobre aquelas três pessoas que eu agora estou a ver ali ou sobre a garrafa de água do luso, deitada, não sei.

Eu acho que, também com a idade, estou um bocadinho mais contemplativo, mas constato, não é uma intenção.  Um bocadinho mais fotográfico, mais visual. Deixo-me ficar mais pasmado com determinadas coisas. 

 

Do João Paulo Esteves da Silva,

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